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Einstein e a música
"(...) Einstein começou muito cedo a ter aulas de violino, que se prolongaram até aos 14 anos. A princípio, a prática repetitiva e interminável não lhe agradava nada, mas por fim a música tornou-se uma parte fundamental da sua vida. Mais tarde, escreveu que só depois de se ter apaixonado pelas sonatas de Mozart, aos 13 anos, começara verdadeiramente a compreender e a apreciar a música. Acrescentou ainda que o amor é melhor professor do que o dever. Para Einstein, esta era sem dúvida uma verdade irrefutável, pois detestava as abordagens mecânicas à educação."
in Einstein, Vida & Época, Peter D. Smith
"Einstein tinha pela música um amor profundo, que raiava o espiritual. Hans Byland recorda ter tocado sonatas de Mozart com o jovem Einstein, então com 17 anos: «Quando ele começou a tocar violino, a sala pareceu amplificar-se. Eu estava a ouvir o verdadeiro Mozart pela primeira vez em toda a beleza grega da limpidez das suas linhas, ora graciosas ora magnificamente poderosas. Aquilo é divinal, dizia ele, temos de tocar outra vez. Que alma na forma como tocava! Eu não o reconhecia.» Os compositores preferidos de Einstein eram Bach, Mozart e Schubert, (...)."
in Einstein, Vida & Época, Peter D. Smith
"A mais bela experiência que podemos ter é a do misterioso. Ele é a emoção fundamental que permanece no berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência. Quem não sabe disso e já não consegue surpreender-se ou maravilhar-se, está praticamente morto e tem os olhos embaciados. Foi a experiência do mistério - ainda que misturado com o medo - que deu origem à religião. O conhecimento da existência de uma coisa em que não podemos penetrar, as nossas percepções da razão mais profunda e da beleza mais radiante, as quais só são acessíveis à mente na sua forma mais primitiva - é este conhecimento e esta emoção que constituem a verdadeira religiosidade; neste sentido, e apenas neste sentido, sou um homem profundamente religioso. (...)"
in «What I believe» (1930), Albert Einstein
Schopenhauer, em seu livro O mundo como vontade e representação – vol 1, apresenta com maestria uma possível epistemologia da música. A música, para o nosso filósofo em questão, seria uma totalidade daquilo que presenciamos na realidade, que traz em seu bojo uma universalidade que está em paridade com o peculiar das coisas. Todavia, não se trata de uma universalidade alienante, descompromissada com a realidade. Essa universalidade na qual Schopenhauer se refere se relaciona com a matematização dos objetos possíveis da experiência sensível, isto é, elementos da Geometria e os números que são formulas universais da empiria, aplicáveis a priori em qualquer circunstância e contexto. Esse material matemático da experiência, de certa forma, não é abstração, mas, antes de tudo, intuição, com característica de delimitação, demarcação. Dentro desta perspectiva intuitiva, tudo aquilo que ocorre na interioridade humana é passível de ser expresso por uma infinidade de melodias. Não estamos, ainda, no universo dos conteúdos, mas no universo das formas. A melodia, nessa etapa, não está sendo regida por nenhuma empiria, mas repousa naquilo que Schopenhauer chama de “em-si”. Fixemos essa gama de conceitos pela explanação do próprio filósofo: “A música é, portanto, se considerada como expressão do mundo, uma linguagem universal em sumo grau, que até mesmo para a universalidade dos conceitos está mais ou menos como esta está para as coisas singulares. Sua universalidade, porém, não é de modo algum aquela universalidade vazia da abstração, mas é de espécie inteiramente outra e está ligada a uma completa e clara determinidade. Equipara-se a isso às figuras geométricas e aos números, que, como formas universais de todos os objetos possíveis da experiência e aplicáveis a priori a todos, não são no entanto abstratos, mas intuitivos e completamente determinados. Todos os esforços, emoções da vontade, tudo aquilo que se passa no interior do homem, e que a razão lança no amplo conceito negativo de sentimento, pode exprimir-se pelas infinitas melodias possíveis, mas sempre na universalidade da mera forma, sem o conteúdo,sempre segundo o “em-si”, nunca segundo o fenômeno, como que sua alma mais íntima, sem o corpo.” Essa estreita relação que a música tem com a essência das coisas, de certa maneira, justifica todas as vezes quando estamos ouvindo uma música, uma peça musical, uma sinfonia, nos identificamos prontamente com a música que está sendo executada. E essa correspondência não ocorre sem uma entrega radical, sem reservas à música que está sendo executada, pois, ao contrário, o visgo musical não seduziria a quem pudesse estar a escutar alguma música. Quando alguém se entrega sem medidas à música, não fica isento da atividade do visgo musical: recorda-se de muitas circunstâncias do passado, muitas lembranças vem à tona, daquilo que está vivendo no momento, como um vulcão ativo ao liberar seu magma. Aqui é retirado o véu das coisas, pois quem está a escutar, identifica a melodia com determinado período de sua existência, que de tal maneira tocado por sua ação, não pode ser o mesmo quando estava a escutar pela primeira vez. Esse desvelamento do ser está no processo do vir-a-ser, por isso é inesgotável o que revela a quem aprecia uma obra musical. Cada execução é uma surpresa, uma novidade. Seja por causa da operação desse visgo musical, seja pela disposição humana no exato momento em que está exposta a essa ação da música. Todavia, em um instante racional, ele já não consegue localizar o nexo entre música e realidade. Mais uma vez, com a palavra, Schopenhauer: “A partir dessa íntima relação que a tem com a essência verdadeira de todas as coisas, pode-se também explicar por que, quando soa uma música adequada a alguma cena, ação, evento, circunstância, esta nos parece abrir seu sentido mais secreto e se introduz como o mais correto e mais claro dos comentários: do mesmo modo que, para aquele que se abandona inteiramente ao impacto de uma sinfonia, é como se ele visse passarem diante de si todos os possíveis eventos da vida e do mundo: contundo, quando presta atenção, não pode identificar nenhuma semelhança entre aquele jogo sonoro e as coisas que pairavam diante dele.” A música, na verdade, se distingue das mais variadas artes não por ser uma mera reprodução da experiência, o que não é. O que verdadeiramente faz a diferença é aquilo que o filósofo chama de “objetividade adequada da vontade”, ou seja, a música é, no fundo, uma mímesis volitiva, que expressa que para cada exemplar sensível, há um correspondente metafísico. A partir disso, poderíamos chamar a realidade, de música volitiva encarnada. Possivelmente, isso explica efetividade da vida na realidade, o surgimento da pintura derivada da música, quanto mais for estreita a correspondência melodia e essência das coisas, como afirma Schopenhauer: “Pois a música, como foi dito, difere de todas as outras artes por não ser cópia do fenômeno ou, mais corretamente, da objetividade adequada da vontade, mas cópia imediata da própria vontade e, portanto apresenta, para tudo o que é físico no mundo, o correlato metafísico, para todo fenômeno a coisa em si. Poder-se-ia, portanto, denominar o mundo tanto música corporificada quanto vontade corporificada a partir disto, pois, pode-se explicar por que a música logo faz aparecer toda pintura, e, aliás, toda cena da vida efetiva e do mundo, em significação mais elevada; e isto, sem dúvida, tanto mais quanto mais análoga é sua melodia ao espírito interior do fenômeno dado.” O material intuitivo não tem uma relação de necessidade com a universalidade da música; ainda constituem uma arbitrariedade para o universal. Somente revelam a delimitação da efetividade, enquanto a música retrata na universalidade da forma. Dito de maneira mais simples, os conceitos possuem o formato das coisas, a exterioridade, e nesse sentido são abstrações puras. Entretanto, a música fornece a tônica primordial que antecede qualquer composição. Mesmo que Schopenhauer coloque essa consideração, ainda acha possível uma aproximação entre composição e representação intuitiva, aspectos diferentes que apontam para a mesma essência das coisas. Essa dialética, que desemboca no fundamento último das coisas, faz com que o compositor transcreva em palavras as nuances da emoção que a vontade exprime e que é o âmago da universalidade da música. Dessa maneira, a obra musical é considerável, segundo o nosso filósofo: “Tais imagens singulares da vida humana, associadas à linguagem universal da música, nunca estão ligadas a ela ou lhe correspondem como necessidade completa; estão para ela apenas na relação de um exemplo arbitrário para um conceito universal: expõem na determinidade do efetivo aquilo que a música enuncia na universalidade da mera forma. Enquanto os conceitos contêm somente as primeiras formas abstraídas da intuição, como que a casca exterior tirada das coisas, e, portanto são, bem propriamente, abstrações, a música por sua vez dá o mais íntimo núcleo que precede toda formação. Mas em geral é possível uma referência entre uma composição e uma representação intuitiva, isso repousa, como foi dito, em que ambas são apenas expressões inteiramente diferentes da mesma essência interna do mundo. Ora, quando no caso singular, tal referência existe efetivamente e, portanto, o compositor soube enunciar as emoções da vontade que constituem o núcleo de um acontecimento dado na linguagem universal da música: então a melodia da canção, a música da ópera é expressiva.A analogia encontrada pelo compositor entre ambas, porém, tem de proceder do conhecimento imediato da essência do mundo, sem que sua razão tenha consciência disso, e não pode, com uma intencionalidade consciente, ser imitação mediada por conceitos: do contrário, a música não enuncia a essência interna, a própria vontade; imita apenas, insuficientemente, seu fenômeno; como o faz toda música propriamente descritiva (…)” A comparação melodia-fundamento das coisas, mediada pelo compositor passa pela ótica do conhecer imediato do fundamento das coisas, sem a intervenção da razão e sem a intervenção da intenção, conceito esse, diga-se de passagem, tão banalizado pela pós-modernidade quando apela por uma subjetividade exagerada. Do contrário, a música não trará o fundamento inquebrantável das coisas; a vontade apenas será uma imitação imperfeita da realidade, como por exemplo, a partitura. Ela é uma tentativa de objetivização e matematização da música, retalhada em tempo, espaço, colcheia, semicolcheia, etc., mas que permanece sem emoção, sem vida, quando não há quem possa executar, ou se o músico se limita apenas a executar o que lhe informa a partitura. Que fique claro: não nego a importância da partitura, somente indico que o músico que tem a técnica não ficar preso a ela. Senão, fica escravo da técnica e não faz a verdadeira música que desvenda do ser e a realidade, e faz dessa relação algo inédito.
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Karl Popper e a Música – Parte I
Continuando nossa série de posts apresentando contribuições para a filosofia da música por diversos autores das humanidades, quero chamar atenção aqui e em dois posts seguintes para as idéias musicais de Sir Karl Popper (1902-1994).
Conhecido mais por estabelecer o critério científico do falsificacionismo (falsiability) e pela crítica rigorosa ao historicismo, Popper permitiu-se especular sobre a música de maneira indissociável à sua epistemologia – e como veremos mais tarde, mesmo sua filosofia política ressoa um tanto nas especulações musicais. Popper era um profundo conhecedor de música, vindo de uma família com diversos músicos amadores – tinha mesmo um parentesco distante com o maestro Bruno Walter –, chegando até a cogitar ser músico na juventude. Considerando-se sempre um conservador em matéria de arte, para ele o último dos grandes compositores foi Schubert (com raras exceções a alguma coisa de Brahms e Bruckner). Imaginemos então o pouco apreço que ele teve pelas vanguardas que lhe foram contemporâneas.
As idéias que nos interessam aqui foram condensadas em sua célebre autobiografia,Unended Question – traduzida no Brasil como Autobiografia Intelectual – e seguindo o próprio esquema de Popper, faço notar três sugestões que ele arriscou sobre música. Ainda que pontuais, o vienense não pode ser acusado de falta de originalidade na escolha dos temas: 1) sobre origem da música polifônica; 2) a distinção entre música objetiva e subjetiva; e 3) o problema da idéia de progresso na música. Começarei minha exposição pela segunda, a distinção entre a música objetiva – cujo ideal pode ser encontrado em Bach – e a música subjetiva – cujo ideal está em Beethoven.
Tal distinção entre Bach e Beethoven ocorreu a Popper ainda na juventude, e no momento em que escreve, décadas depois, ele mesmo não a considera mais tão rigorosa, dando-se ao trabalho de expô-la mais para revelar sobre sua evolução intelectual. Contudo, ainda assim achei interessante como uma explicação inicialmente da esfera epistemológica se aproveita da música para, ao fim, criar curiosos desdobramentos nesta. Se a idéia é de fato frutífera ou palpite diletante deixo para vocês julgarem.
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Karl Popper e a Música – Parte II
Seguindo nossa série sobre a filosofia da música de Karl Popper, passemos aqui para sua crítica à idéia de progresso na música. Sem dúvida, de suas três sugestões essa é a que mais se relaciona com o resto de sua epistemologia. Isso porque Popper foi um grande crítico do historicismo, não só devido à invalidade de qualquer método científico dessa ideologia, mas, sobretudo, pelo perigo que ela representa para a sociedade. Algo similar acontece com arte e especialmente na música de sua época.
Vejamos como ele chegou nesse ponto. Como dito no post anterior, Popper desconsiderava o ideal artístico da chamada música subjetiva. Para o filósofo, a música não pode se resumir a expressar o estado emocional de seu criador, conforme Beethoven fez bastante em suas últimas obras. Mais do que rompantes de inspiração, a música é engenho, tentativa constante de adaptar criativamente regra e invenção, na base da tentativa e erro.
Mas isso não quer dizer que a arte deva ser desprovida de conteúdo emocional, pelo contrário. Ocorre que Popper quer recusar a teoria expressionista da arte, e para tanto recorre a mais antiga demonstração de tal teoria, descrita no Íon de Platão. Nesse diálogo, discutem-se diversas respostas sobre a origem da obra, inclusive a de que seria resultado de possessão/inspiração. Ao desconsiderar a técnica, Popper não receia em dizer que está tudo errado, porém quando Platão sugere que o artista e a platéia são igualmente afetados pela obra, ao menos ele se aproxima de um ponto essencial verdadeiro: na arte, as emoções não servem para simplesmente serem expressas, mas para “testar”, objetivamente, os efeitos racionais da composição.
Impacto emocional é apenas conseqüência da resolução de outros tantos problemas que o compositor enfrenta ao se deparar com uma partitura em branco – fazer um bom contraponto, por exemplo. Nossa apreciação não deve se basear na emoção pura e simples, mas na satisfação de ouvir uma peça cujo resultado racional é equilibrado.
Certamente as composições nascidas sob o signo do expressionismo não resistem ao lado da música objetiva. O problema é que tal ideal estético foi utilizado até a exaustão pelos mesmos criadores da nefasta idéia de progresso na música. A crença historicista no campo musical teria começado no romantismo – onde mais? –, precisamente com Richard Wagner e sua “música do futuro”.
Saliente-se que Popper não recusa que pode existir algo que se assemelhe a progresso em arte, uma vez que novas possibilidades sempre são descobertas – na música, a crescente sofisticação dos instrumentos permitiu explorações musicais inéditas. Mas o ponto, diz Popper, é que nem mesmo isso é tão relevante no resultado final. É a postura de Wagner, que julgava a si mesmo como o gênio que apresenta a música num estágio superior de possibilidades, por vezes compreendida em seu tempo apenas por um pequeno grupo de esclarecidos, que Popper procura combater, uma vez que desde os ensaios dele a música tem sido freqüentemente contaminada em criar novidades que ameaçam a tradição anterior.
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Karl Popper e a música – Parte III
Neste último post da série sobre Sir Karl Popper e a música quero tratar daquela que deve ser a menos polêmica de suas idéias, mas nem por isso menos inovadora: sobre o surgimento da polifonia na música ocidental. O ponto aqui é curto, uma vez que lida com aspectos práticos – é eminentemente teoria musical –, de modo que Popper nem sente necessidade de marcar posição contra alguém ou alguma tradição em particular. Enfim, bem do jeito que o autor de The Poverty of Historicism apreciava discutir música, com bastante objetividade.
Aparentemente a idéia de como foi possível a polifonia em nossa civilização parece algo desconectado de temas como música objetiva e subjetiva ou o historicismo na arte. Porém, vejamos que mesmo lidando com um tema aparentemente tão óbvio Popper termina expondo seu ideal estético. Quando jovem, ele cogitou fazer o doutorado em história da música justamente sobre a origem da polifonia, mas, no que foi estudando o tema, também foi mudando de interesse, e partiu da psicologia da descoberta para a epistemologia objetiva.
Primeiramente, veja-se que para Popper a polifonia, assim como a ciência, é uma peculiaridade ocidental. Não se trata de polifonia somente como o uso da técnica contrapontística, mas da harmonia particular de nossa civilização. Ao que tudo indica, esta surgiu entre os séculos IX e XV, e não será tolice supor que já existia mesmo antes de ser descrita – sobretudo na música sacra não litúrgica. Como ele faz notar, é característico desse estilo o canto de diversas melodias em ritmo lento, cantadas em quintas ou oitavas paralelas. É o chamadoorganum.
Cantando em quintas paralelas abre-se a possibilidade para as quartas, visto que basta dobrar os baixos para chegar a esse efeito. Daí que não demorou muito para que os executantes do cantochão se arriscassem em intervalos de terça e de quinta.
Nas primeiras descrições do organum, que datam do século IX, a melodia do cantochão é interpretada por duas vozes – sendo a melodia principal, dita principalis, duplicada na quarta ou quinta inferior pela segunda voz – a organalis.
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http://euterpe.blog.br/filosofia-da-musica/karl-popper-e-a-musica-%E2%80%93-parte-iii
WAGNER
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MÚSICA - por H. L MENCKEN
H.L.MENCKEN
BEETHOVEN
BEETHOVEN
Beethoven foi um daqueles homens cuja estatura, vista
em retrospecto, só parece crescer. Quantos movimentos não
surgiram para pô-lo definitivamente na prateleira? Pelo
menos uns dez nos cem anos desde a sua morte. Houve um
em Nova York, em 1917, lançado por críticos bocós e
estimulado pela febre da guerra: pregava que o lugar de
Beethoven seria tomado por profetas das novas luzes, como
Stravinski. O saldo daquele movimento foi o de que a melhor
orquestra da América foi a falência – e Beethoven
sobreviveu sem um arranhão. Claro que o século XIX não foi
deficiente em grandes músicos. Produziu Schubert,
Schumann, Chopin, Wagner e Brahms, para não citar hordas
inteiras de Dvoráks, Tchaikovskis, Debussys, Verdis e
Puccinis. Nenhum deles nos deu nada melhor do que o
primeiro movimento da Heróica. Aquele movimento, o
primeiro desafio da nova música, continua a ser a última
palavra. É a peça mais nobre de música absoluta já escrita
em forma de sonata e é também a mais nobre em música
descritiva. Em Beethoven, a distinção entre as duas formas
era puramente imaginária. Tudo que ele escreveu era, de
certa forma, descritivo, incluindo até as primeiras duas
sinfonias, e tudo era música absoluta.
Deve ter sido uma brincadeira dos deuses, a de opor
Beethoven, em seus primeiros dias de Viena, ao papa
Haydn. Haydn era inegavelmente um gênio e, depois da
morte de Mozart, não tinha qualquer razão aparente para
temer um rival. Se ele não criou realmente a sinfonia como a
conhecemos hoje, pelo menos enriqueceu a forma com suas
primeiras autênticas obras-primas – e não com uma ou duas,
mas literalmente com dezenas. As mais complexas
harmonias pareciam jorrar dele como petróleo de um poço.
Mais ainda, sabia como dominá-las, porque era um mestre
da arquitetura musical. Mas, quando Beethoven entrou em
cena, o velho Haydn teve de descer um degrau. Era uma
gazela contra um touro: com um bramido, o combate
terminou.
Os músicos costumam ver neste combate uma mera
disputa entre técnicos. Admitem que a habilidade e
engenhosidade de Beethoven eram muitíssimo maiores –
que tinha um controle mais seguro sobre seu material, mais
ousadia e criatividade, um conhecimento muito maior da
dinâmica, dos ritmos e dos matizes –, em suma, uma
musicalidade tremendamente superior. Mas não foi isto que
o tornou tão superior a Haydn – porque este também tinha
suas superioridades: por exemplo, seu constante estado de
alerta inventivo, sua capacidade para escrever melhores
canções. O que alçou Beethoven acima do velho mestre foi a
sua dignidade como homem. Os sentimentos expressos por
Haydn pareciam os de um pároco de aldeia, de um corretor
da Bolsa ou de um violista carinhosamente enternecido por
Kulmbacher. Quando chorava, era com as lágrimas de uma
mulher que acaba de descobrir uma nova ruga; quando se
mostrava feliz, era com a alegria de uma criança na manhã
de Natal. Em contrapartida, os sentimentos que Beethoven
punha em sua música eram os sentimentos de um deus.
Havia algo de olímpico em suas iras e rosnados; e, quando
gargalhava, era com um toque do fogo do inferno.
Literalmente, não há um traço de vulgaridade em toda
a sua obra. Nunca é doce ou romântico; nunca derrama
lágrimas convencionais; nunca toma atitudes ortodoxas. Em
suas passagens mais ligeiras, há a imensa e inescapável
dignidade dos velhos profetas. Ele se preocupa, não com as
agonias transitórias do amor romântico, mas com a eterna
tragédia do homem. Ê um grande poeta trágico e, como
todos os grandes poetas trágicos, obcecado pela
inescrutável falta de sentido da vida. Da Heróica em diante,
raramente desligou-se deste tema. Ele ruge através do
primeiro movimento da Dó Menor e chega à sua estupenda
declaração final na Nona. Tudo isto era novo em sua época,
causando murmúrios de surpresa e até indignação. O passo
dado, da Júpiter de Mozart para o primeiro movimento da
Heróica, foi perturbador; os vienenses começaram a ficar
inquietos em suas primeiras filas. Mas havia um entre eles
que não se inquietou, e chamava-se Franz Schubert.
Consulte o primeiro movimento da sua Inacabada ou o lento
andamento da Trágica e constate como o exemplo de
Beethoven foi rapidamente seguido – e com que gênio.
Houve um longo hiato depois disto, até que o dia 6 de
novembro de 1876 amanheceu em Karlsruhe e, com ele, veio
a primeira apresentação da Dó Menor de Brahms. Mais uma
vez os deuses tinham entrado numa sala de concerto – e
entrarão de novo quando nascer outro Brahms, não antes,
porque nada pode sair de um artista que já não esteja no
homem. O que minimiza a música e todos os Tchaikovskis,
Mendelssohns e Chopins? Ê o fato de que é a música de
homens vazios. Bonita, sim, e freqüentemente – à sua
maneira. Ê infinitamente engenhosa, profissional e tem
certas idéias musicais encantadoras. Mas é tão oca, no
fundo, quanto uma bula papal. Ê música de homens de
segunda classe.Beethoven desprezava todos estes artifícios: não
precisava deles. Seria difícil pensar em outro compositor,
mesmo de quarta classe, que trabalhasse com um material
temático de tão pouco mérito intrínseco. Apropriava-se de
canções onde as encontrava; construía-as a partir de
fragmentos de motivos folclóricos; à falta do resto,
contentava-se com uma simples frase ou algumas notas. Via
tudo isto como material em estado bruto; seu interesse se
concentrava em como usá-lo. Era a este uso que ele
emprestava o impressionante poder do seu gênio. Sua
engenhosidade começava por onde outros haviam parado.
Suas estruturas mais complicadas retinham a clareza
abrangente do Parthenon. E, delas, tirou uma espécie de
sentimento que nem os gregos poderiam igualar; Beethoven
era preeminentemente um homem moderno, sem o menor
traço de barbárie. Em sua música havia o alto ceticismo
característico do século XVIII, mas ele lhe insuflou o novo
entusiasmo, a nova determinação de desafiar e bater os
deuses, típicos do século XIX.
Quanto mais envelheço, mais me convenço de que
nunca houve um fenômeno tão portentoso na história da
música quanto a primeira apresentação pública da Heróica,
a 7 de abril de 1805. Os redatores do programa camuflaram
a obra com tantas camadas de especulações banais que
seus méritos intrínsecos quase foram esquecidos. Seria ela
dedicada a Napoleão I? E, se era, a dedicatória seria sincera
ou irônica?E daí? – quero dizer, e daí, para quem não seja surdo?
Ela poderia ter sido dedicada a Luís XIV, a Paracelso ou a
Pôncio Pilatos, sem fazer a menor diferença. O que a torna
digna de discussão, hoje e sempre, é o fato de que, logo na
primeira página, Beethoven atirou seu chapéu na arena e
proclamou sua imortalidade. Sem concessões, sem pontes
fáceis com o passado. A Segunda Sinfonia ficara quilômetros
para trás. Nascia uma nova espécie de música, cheia de
desafios. Sem introduções melífluas ou conciliatórias; sem
rodeios preparatórios para levar a platéia no bico e dar
tempo ao regente para encontrar o seu lugar na partitura.
Nada disso. Uma furiosa colisão da tríade tônica saía do
silêncio e, de repente, sem pausa, a primeira exposição do
primeiro assunto – amargo, dominador, áspero, rouco e,
curiosamente, belo – com seu impressionante choque contra
o elétrico dó sustenido. A carnificina começava cedo;
estávamos ainda apenas no sétimo compasso. No 13º e 14º,
o incomparável rolar da escala em mi bemol – e o que se
seguia era tudo que já havia sido grande estilo, talvez tudo
que será dito, sobre como fazer música em grande estilo.
Tudo que se fez depois, inclusive por Beethoven, foi à luz
daquele exemplo perfeito. Cada compasso da música
moderna honesta tem uma dívida de gratidão para com
aquele primeiro movimento.
O resto da Heróica é beethovenês, mas não a sua
quintessência. Diz a lenda que a marcha fúnebre só foi
incluída por que era uma época de morticínios por atacado,
e marchas fúnebres estavam em moda. Sem dúvida, aquela
platéia da estréia em Viena, chocada e confusa pelos
sucessivos desafios do primeiro movimento, deve ter ficado
grata pela lúgubre melodia. Mas, e o scherzo? Outra
perversa investida contra o pobre Haydn! Dois gigantes em
luta diante de uma orquestra de anões soprando como
loucos. Não admira que um sincero vienense gritasse das
galerias: “Eu pagaria mais um kreutzer se esta coisa
parasse!”. Bem, finalmente parou e então veio algo mais
tranqüilizador – um tema com variações. Todos em Viena
conheciam e adoravam os temas com variações de
Beethoven. Ele era, de fato, o mestre dos temas com
variações. Mas havia um coringa entre as cartas. As
variações ficaram mais e mais complexas e surpreendentes.
Coisas estranhas começaram a acontecer e aqueles
exercícios tradicionalmente educados tornaram-se
tempestuosos, temperamentais, cacofônicos e trágicos. No
final, um áspero e exigente tumulto de acordes – era a
Sinfonia em Dó Menor projetando a sua sombra.
Deve ter sido uma grande noite em Viena. Mas, talvez,
não para os próprios vienenses. Eles tinham ido ouvir “uma
nova sinfonia em ré sustenido” (sic!). E o que encontraram
no Theater-an-der-Wien foi uma revolução.
– 1926-
WAGNER
Quando se contemplam as estupendas realizações de
Richard Wagner, é difícil deixar de imaginar até que ponto
ele teria chegado se não tivesse sido tão atormentado por
suas duas detestáveis mulheres. A primeira, Minna Planer,
opunha-se implacavelmente à sua obra e fez de tudo para
reformá-lo. Achava Lohengrin incompreensível e Tannhauser
indecente. Sua esperança, até que Wagner a chutasse, era a
de que parasse com aquilo e se dedicasse à composição de
óperas respeitáveis à maneira de Rossini. Minna era cantora
– e tinha cérebro de cantora. Parece claro que a presença de
uma mulher destas – e Wagner viveu com ela durante 20
anos deve ter sido um fardo tenebroso sobre o seu gênio
criativo. Nenhum homem consegue ser indiferente aos
preconceitos e opiniões de sua mulher. Ela tem
oportunidades demais para enfiá-las pela garganta dele. Se
não pode obrigá-lo a ouvi-la vociferando e balindo, pode
fazê-lo com uma voz fanhosa e hipócrita. Supor que ele
consiga prosseguir no seu trabalho sem lhe prestar atenção
equivaleria a supor que ele trabalhasse sem ligar para uma
dor de dentes, para sua consciência ou para o zoológico da
vizinhança. Apesar de Minna, Wagner compôs um punhado
de dramas excelentes. Mas se a tivesse envenenado no
começo de sua carreira, teria composto muitos outros mais,
talvez até melhores.
Sua segunda mulher, a celebrada Cosima Listz-von
Bülow, era bem mais inteligente do que Minna, donde
podemos presumir que sua presença na produção musical de
Wagner tenha sido menos prejudicial. Infelizmente, parece
que ela também mais o atrapalhou que ajudou. Para
começar, seu rosto era horroroso – e nada é mais prejudicial
para a faculdade criativa do que a constante presença da
extrema feiúra. Cosima, de fato, lembrava as mulheres de
hoje que se metem em política; até mesmo Nietzsche, um
jovem romântico, teve de enlouquecer antes de se apaixonar
por ela. Em segundo lugar, há boas razões para se acreditar
que, até a morte de Wagner, ela secretamente acreditava
que seu pai, o velho Franz, era um músico muito melhor.
Esposas invariavelmente incorrem neste erro; encontrar uma
que consiga separar o homem de gênio do mero marido, e
então avaliar o primeiro com exatidão e justiça, é raríssimo.
Toda mulher respeita seu pai, mas sua visão do marido é
misturada com o desprezo, porque só ela sabe dos óbvios
estratagemas que usou para capturá-lo. É difícil para ela,
sendo tão agudamente consciente das fraquezas do homem,
dar o devido peso à dignidade do artista. Cosima, além
disso, tinha péssimo gosto, o que pode ter agido
destrutivamente sobre o pobre Wagner. Há partes de
Parsifal que a sugerem fortemente muito mais do que
sugerem o autor de Die Meistersinger.
Não estou depreciando Wagner; ao contrário, respeitoo,
talvez excessivamente. É desconcertante pensar na obra
que deixou, com Minna e Cosima azucrinando seus ouvidos.
O que me interessa é perguntar se ele teria ido muito além
sem a presença daquelas duas e de seus voluntários
assistentes. A idéia é fascinante, mas também alarmante.
Há um limite além do qual a beleza pura torna-se
dilacerante. Em Tristão e Isolda, no Anel e até em trechos de
Parsifal, Wagner força sua música até perto deste limite. Um
pouquinho à frente fica a quarta dimensão do espírito – e a
loucura.
– 1924-
TEMPO DI VALSE
A valsa nunca sai completamente de moda, fica apenas
de tocaia; de vez em quando, faz um triunfal retorno, para
tormento e corrupção da pureza química. As danças
populares que surgem e somem são muito grosseiras para
pôr em perigo seres humanos civilizados; sugerem tomar
cerveja direto do barril; o mais elementar bom gosto é
suficiente para nos anestesiar contra elas. Mas, e a valsa?
Ela se esgueira, é insidiosa, apaziguadora, linda. Faz o seu
trabalho, não com um alarido colegial ou uma explosão
numa fábrica de munições, mas com o sussurro das árvores,
o murmúrio do mar e outras imagens antigas. O jazz só atrai
os bárbaros, vulgares e capiaus. Mas há qualquer coisa
mística em Wiener Blut ou em Künstlerleben que atrai até os
filósofos.
A valsa é, na verdade, magnificamente indecorosa,
porque torna lúbrico o espírito. Arrisco-me a dizer que as
composições de Johann Strauss já fisgaram mais rapazes e
moças do que todos os astros de cinema e caçadores de
escravas brancas desde a queda do Império Romano do
Ocidente. Há algo de irresistível na valsa. Aplique-a na mais
gorda e patusca ou na mais magra e ácida das mulheres, e
em dez minutos ela estará pronta para o mais clandestino
dos beijos atrás da porta. Seguido, naturalmente, da
embaraçosa queixa de que seu marido não a compreende,
que bebe demais e que está indo amanhã, a negócios, para
Cleveland, Ohio.
– 1919
JOHANN STRAUSS
O centenário de nascimento de Johann Strauss, o Moço,
passou quase despercebido nos Estados Unidos, em 1925.
Em Berlim e Viena, foi celebrado com cerimônias
imponentes, e as rádios não paravam de tocar Wein, Weib
und Gesang (Vinho, mulheres e música) e Rosen aus dem
Süden (Rosas do sul). Por que isto não aconteceu aqui? De –
se pôr a culpa na maldição do jazz – ou teria sido a atual
pestilência da Proibição e a conseqüente escassez de boa
cerveja no mercado? Inclino-me para a resposta número
dois. Qualquer música já é difícil quando movida a água da
bica, mas a valsa é uma absoluta impossibilidade. Man Lebt
Nur Einmal é tão terrível num país sob Lei Seca quanto, uma
marcha de John Philip Sousa num enforcamento.
Pois a essência de uma valsa vienense, especialmente
uma de Strauss, é a alegria, a felicidade, o bom humor.
Claro, já se escreveu música triste em Viena – mas
principalmente por estrangeiros: Haydn, que era croata;
Beethoven, que foi alimentado com o ácido vinho do Reno;
Brahms, que veio da gelada costa do Báltico. Bem, houve
Schubert, que era vienense, mas, quando ele entra em cena,
todas as regras tornam-se letra morta. Quanto a Strauss, era
100% vienense e classificá-lo de menos que isto o indignava.
A valsa andou flertando com Paris, nas mãos de um
sardônico judeu alsaciano, Waldteufel, mas foi em Viena que
ela saltou dos teclados para os salões, conduzida por Johann
Strauss, o Velho, e por seu filho, o Moço. Os dois, extraindo
um pouco de Schubert e outro tanto do folclore, guindaram-
na a um esplendor imperial. Nenhuma outra forma de dança,
nem mesmo o minueto, produziu até agora música mais
deliciosa. E nenhuma outra preservou tão perfeitamente a
euforia regada a cerveja das danças camponesas. As
melhores valsas de Strauss foram escritas para a mais
pomposa e cerimoniosa corte da Europa, mas, em todas
elas, permanecia o sabor expansivo do verde da aldeia.
Mesmo a solene valsa do Kaiser, com seu retinir de sabres e
cliques de botas no espaço; logo entrava no ritmo brincalhão
da rústica 5pringtanz.
É curioso, melancólico e repulsivo o fato de que Johann
Strauss II tenha sido educado para exercer aquele ramo da
delinqüência conhecido como especulação financeira. Seu
pai queria que ele se tornasse o que, em nossos dias, é
chamado de vendedor de apólices. Como os pais são umas
bestas! Este, em particular, era um grande mestre da valsa,
e, no entanto, acreditava que poderia salvar os três filhos da
sua sedução lasciva. O jovem Johann se dedicaria às
apólices, Josef à arquitetura e Eduard, o caçula, ao Direito. O
velho morreu a 25 de setembro de 1849. No dia seguinte,
todos os três estavam escrevendo valsas. Johann, como
ficou claro de saída, era o melhor do trio. Na realidade, era o
melhor músico que já tinha composto valsas dançantes e
seria um dos compositores mais conhecidos de todos os
tempos. Ele tomou a valsa de onde seu pai a deixara e
gradualmente envolveu-a numa forma quase sinfônica.
Desenvolveu a introdução, que até então era pouco mais
que uma fanfarra, numa coisa complexa, quase uma
overture, e elaborou a coda até que esta passou a exigir
todos os recursos do compositor, incluindo até o
contraponto. Na própria valsa em si, ele enxertou tanta
riqueza melódica e invenção rítmica, além de ser um mestre
da orquestração, que o efeito ficou estonteante. Um efeito
que não era formal ou óbvio nem por um instante, mas
carregado de sutilezas nas mudanças de tons e na variedade
dos baixos. E suas codas tão simples e, ao mesmo tempo,
tão extasiantes.
Johann certamente não precisava ser modesto. Era uma
importante figura na corte austríaca e, quando passava,
pescoços se espichavam para vê-lo, como se fosse um
embaixador. Viajava largamente e era recebido com honras
de Estado em toda parte. Suas valsas inundaram o mundo.
Suas operetas, que vieram em seguida, puseram na sombra
as peças de Gilbert e Sullivan. Vivia abarrotado de
encomendas. Ganhou muito dinheiro e deixou bem de vida
todas as suas mulheres. E, melhor ainda, tinha o respeito e
até alguma inveja de todos os seus contemporâneos
musicais. Wagner, assim como Brahms, adorava suas valsas.
Certa vez, uma das mulheres de Strauss encontrou Brahms
numa festa e pediu-lhe que autografasse seu leque. Ele
escreveu no leque o tema de abertura do Danúbio Azul e
acrescentou, “Leider nicht von Johannes Brahms” –
Infelizmente, não por Johannes Brahms. Era um
cumprimento, sem dúvida – talvez o mais elogioso que a
história já registrou –, e não foi por mera cortesia, porque
Brahms já tinha escrito montes de valsas e sabia que isto
não era tão fácil quanto parecia.
Os peixes miúdos seguiram a baleia. Nunca houve
qualquer sombra de discussão a respeito ae5trauss, de sua
categoria. Seu campo não era vasto, mas, dentro dele,
ninguém poderia desafiá-lo. Tornou-se, no fim, o deão de
uma espécie de universidade de compositores de valsas,
com sede em Viena. A valsa, levada por ele à perfeição,
tornou-se a dança favorita do mundo civilizado e, embora
tivesse de enfrentar sucessivas rivalidades, continuou a
reinar por duas gerações – e, mesmo hoje, apesar da
morrinha do jazz, está mais uma vez de volta. Discípulos de
talento começam a aparecer na esteira straussiana – Ziehrer
com a linda Wiener Mad’l, Komchak com Fidelis Wien, Lincke
com Ach, Frühling, Wie Bist Du So Schön, e muitos outros.
Mas Johann nunca perdeu a primazia. Até o dia de sua
morte, em 1899, ele foi o primus inter omnes. Viena chorou
um mar de lágrimas com cerveja sobre seu túmulo. Um
grande vienense, talvez a última flor da velha Viena, havia
partido.
– 1927-
ÓPERA
A ópera, para ouvidos mais sensíveis à beleza, deve
parecer inevitavelmente detestável e espalhafatosa, por
apresentar esta beleza num cenário de puro mau gosto e
grosseiras sugestões de provocação sexual. É patrocinada
em grande parte, em todos os países, pela mesma espécie
de sensualistas ricos que também financiam as comédias
musicais. Pode-se encontrar na sala de seus diretores o
mesmo ranço de sociedade anônima do mais reles teatro de
revista. Estes vermes, naturalmente, posam para os jornais
como devotos e fanáticos partisans da arte. Mas basta
observar o tipo de ópera de que eles gostam para se ter à
medida de sua verdadeira discriminação artística.
O autêntico apreciador de música pode até aceitar a
casca da ópera para chegar ao cerne da música que ela
deve conter, mas isto não quer dizer que ele aprove esta
casca ou que goste de mastigá-la. Muitos músicos, de fato,
preferem ouvir música operística fora dos teatros de ópera;
isto explica por que se ouve tanto coisas menores como A
Cavalgada das Valquírias nas salas de concerto. A
Cavalgada das Valquírias tem um certo valor intrínseco
como pura música; executada por uma orquestra
competente, pode fornecer algum prazer civilizado. Mas
como é normalmente apresentada em casas de ópera, com
uma manada de megeras gordas atirando-se sobre o palco,
seu efeito só pode ser circense. O tipo de gente que aprecia
tais espetáculos deve ser o que decora sua casa com móveis
pé-de-palito – e eles são a maioria em toda casa de ópera a
oeste do Reno. Vão à ópera, não para ouvir música, nem
mesmo para ouvir música de segunda classe, mas apenas
para assistir a um circo mais ou menos obsceno. Uns
poucos, talvez, tenham outros propósitos; desejam
participar daquele circo, mostrar-se na presença de gente
fashionable, encantar os jecas com o seu esplendor. Mas a
maioria se contenta mesmo com objetivos mais modestos. O
que ganham pelos escandalosos preços que pagam por uma
poltrona é a chance de festejar seus olhos com a visão dos
membros do demimonde e de rebaixar-se diante deles, sob
os holofotes do seu próprio território. Eles avaliam uma
performance, não em proporção à música que esteja em
jogo, mas em proporção ao número de personalidades no
palco e à exibição dos ricos nos camarotes. Uma soprano
que soe como uma araponga ao atingir o fá sustenido
significa mais para esses pobres diabos do que uma pilha
inteira de Johann Sebastian Bachs; a única rival desta
soprano, em todo o domínio da arte, será a contralto, que
ganha uma pensão de um antigo duque europeu e de quem
se diz que foi enceinte por vários acionistas.
A música que estes capiaus aplaudem é,
freqüentemente, quase tão marca-barbante quanto eles
próprios. Para se escrever uma grande ópera, não bastam
conhecimentos de harmonia e contraponto; deve-se ser
também uma espécie de P. T. Barnum [dono de circo e autor
da famosa frase “No mundo inteiro, nasce um idiota a cada
minuto” (N.T.)]. Todos os músicos de primeira classe que
triunfaram na ópera também se faziam de saltimbancos, só
que com talento. Cito apenas Wagner e Richard Strauss. A
ópera é um negócio como qualquer outro, com pouca
relação com a música. Toda a música contida em muitas
óperas populares – por exemplo, Thaïs – pode ser reduzida a
menos do que se encontra em uma ou duas valsas de
Gung’l. Uma ópera pode até conter música de primeira e
fracassar; mas se apresentar um espetáculo luxuoso, será
um sucesso.
Um compositor como Wagner, naturalmente, seria
incapaz de escrever até mesmo uma ópera sem enxertá-la
de música. Em toda a sua obra, inclusive Parsifal, há
passagens magníficas e algumas bastante longas. Aqui ele
foi vencido pelo seu gênio natural, que o fez esquecer
temporariamente em que estava se metendo. Mas estas
passagens magníficas passam despercebidas pelas platéias
comuns de ópera. O que elas mais gostam é precisamente o
que há de mais vulgar e digno de um parque de diversões –
por exemplo, os trechos mais lascivos de Tristão e Isolda. A
música que sai dali é um tédio. O Wagner que elas veneram
não é o músico, mas o mestre de cerimônias. Que ele tinha
um fraco por mecenas e até se deixou seduzir pela filha de
Listz – estes fatos, e não o seu estupendo talento, são os
que sustentam o seu prestígio nas casas de ópera.
Homens superiores, mas sem o seu jeito para negócios,
fracassaram onde ele venceu – Beethoven, Schubert,
Schumann, Brahms, Bach, Haydn. Nenhum deles produziu
uma ópera realmente bem-sucedida; a maioria nem tentou.
Imagine Brahms escrevendo para aquelas cavalgaduras
endinheiradas. Ou Bach. Ou Haydn. Beethoven bem que
tentou, mas meteu os pés pelas mãos: Fidelio sobrevive hoje
principalmente como um leque de overtures de concertos. E
Schubert escrevia mais música de verdade, entre dez da
manhã e a hora do almoço, do que um compositor médio de
ópera seria capaz em 250 anos – e, mesmo assim, Schubert
fracassou na sala de ópera.
–– 1918 -