ANÁLISE - ESTUDOS / HISTÓRIA DA MÚSICA

 A IDÉIA MUSICAL EM VILLA-LOBOS: ESTUDO ANALÍTICO DA “BRANQUINHA” (Prole do Bebê I, nº 1)

Andréa Lage
Introdução


Referindo-se a obras do primeiro nacionalismo musical brasileiro,de ltiberê, Levy, Nepomuceno e Braga, Villa-Lobos fêz o seguinte comentário: ...Eram lindas bonecas de biscuit, barro chinês, celulóide ou de massa, com olhares ternos de brasilienses, mas muito bem vestidas à maneira e costumes estrangeiros(1).
Em 1918, no Rio de Janeiro, Villa-Lobos compôs sua coletânea intitulada a Prole do Bebê, formada por oito peças para piano solo, cada uma delas, referindo-se a uma boneca de características bem brasileiras.
O caderno nº 1 da Prole do Bebê foi estreado por Arthur Rubinstein, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, a 9 de julho de 1922(2). São contraditórias as informações sobre o impacto que a obra provocou no público carioca da época. Bruno Kiefer aponta reações favoráveis em sua estréia, inclusive com o bis de algumas peças. Os relatos posteriores de Rubinstein indicam, no entanto, uma situação diversa. Sua execução num concerto realizado pelo pianista no Rio de Janeiro teria provocado vaias na platéia e reações adversas por parte de importantes figuras do meio musical carioca(3).
Quais os recursos musicais que teria Villa-Lobos utilizado na concepção dessa obra, buscando um autêntico nacionalismo, que no seu entender não falsificassem as características nacionais em detrimento de formas e estruturas impostas pela tradição européia?
A análise de peças do caderno nº 1 da Prole do Bebê contribui para elucidar essa questão, à medida que nos informa sobre uma série de idéias e procedimentos musicais utilizados pelo compositor, no início de uma segunda fase, onde se manifesta um notável enriquecimento de seus recursos técnico-criativos.
Partiremos do estudo analítico da primeira peça intitulada “Branquinha, a boneca de louça”, definindo sua estrutura formal, apontando a caracterização e o comportamento de seus principais elementos estruturais, além de alguns procedimentos típicos do compositor, presentes ao longo da coletânea.
Prole do Bebê, nº 1: o contexto cultural
Antes de tratarmos propriamente da peça em questão é de certo modo necessário situá-la em seu ambiente musical de origem, ou seja, o Rio de Janeiro de 1918.
Os relatos do compositor francês Darius Milhaud, que viveu no Rio de Janeiro em 1917-18, são de grande interesse para nos revelar alguns dos traços característicos do mundo musical carioca, notadamente as relações entre a produção artística brasileira e a européia(4).
Em artigo publicado na Revue Musicale, Milhaud mostra a incrível assimilação da cultura musical francesa pelo meio carioca, ligado à música erudita. Segundo ele, Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald levavam à biblioteca do Conservatório do Rio de Janeiro (nessa época Instituto Nacional de Música) partituras orquestrais de Debussy, do grupo de compositores da Sociedade Musical Independente e da Schola Cantorum, bem como todas as obras publicadas de Satie. De acordo com seus relatos também eram executados nos concertos do Rio de Janeiro obras de Chausson, Debussy, D'Indy, Roussel(5).
O autor ainda faz referência especial às figuras do compositor Oswald Guerra e sua esposa, a pianista Nininha Guerra, que, segundo ele, lia excepcionalmente bem toda a música contemporânea e, juntamente com seu marido, se mantinha a par da atividade musical francesa mais recente.
Esse depoimento de Milhaud mostra sem dúvida a grande influência que o impressionismo francês exerceu no Rio de Janeiro, pelo menos em um determinado meio musical. Baseando-se nos relatos desse compositor e a partir de um processo analítico, Wisnik aponta possíveis influências de Debussy em Villa-Lobos, já nas suas Danças Indígenas (depois Africanas), datadas de 1914-1916(6).
Outro ponto importante nessa avaliação musical realizada em 1920 é relativo à não utilização efetiva do folclore pelos autores musicais eruditos:
É lamentável que todos os trabalhos de compositores brasileiros, desde as obras sinfônicas ou de música de câmara de Nepomuceno e Oswald até as sonatas impressionistas ou as obras orquestrais de Villa Lobos (um jovem de temperamento robusto, cheio de ousadias) sejam um reflexo das diferentes fases que se sucederam na Europa de Brahms e Debussy e que o elemento nacional não se exprima de maneira mais viva e original. A influência do folclore brasileiro, tão rico de ritmos e duma linha melódica tão particular, faz-se sentir raramente nas obras dos compositores cariocas. Quando um tema popular ou o ritmo de uma dança é utilizado numa obra musical, esse elemento indígena é deformado porque o autor o vê através dos olhos de Wagner ou de Saint-Saens, se ele tem sessenta anos, ou dos de Debussy se tem apenas trinta(7).
Referindo-se somente às obras orquestrais de Villa-Lobos, Darius Milhaud nessa época parece não ter conhecimento do caderno nº 1 da Prole do Bebê, onde o elemento folclórico já se faz presente de forma clara e efetiva.
Seja por desconhecimento ou por suas posições estéticas pessoais, contrárias às dos compositores debussystas que se adaptavam a uma harmonia e a uma sintaxe impressionista, Milhaud valoriza essencialmente a música popular urbana: “Seria desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de tangos, de maxixes, de sambas e de cateretês como Tupinambá ou o genial Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia indefinidamente renovada, a verve, a vivacidade, a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa que se encontram em cada obra desses dois mestres, fazem deles a glória e a preciosidade da Arte Brasileira(8).
De forma mais abrangente pode-se entender que nessa época o meio musical carioca era, no que toca às suas manifestações consideradas eruditas, dominado por um grupo de compositores maduros que escreviam aos sessenta anos nos moldes do neo-romantismo tardio de Saint-Saens. As tentativas de rompimento com este quadro geral partem de Villa-Lobos e Luciano Gallet, por volta de 1910. A influência marcante que Glauco Velásquez exerceu sobre seus contemporâneos não pode deixar de ser registrada(9).
Análise da peça “Branquinha, a boneca de louça”
O princípio estrutural básico utilizado na arquitetura musical desta peça é o trabalho em dois planos distintos, onde o primeiro é constituído predominantemente por elementos melódicos e o segundo por elementos rítmico-harmônicos, que formam um ostinato. Segue o padrão estrutural das melodias acompanhadas, com a diferença de que, nesta peça, o ostinato tem função preponderante de sustentação e ordenamento do discurso musical, extrapolando a função de acompanhamento de melodias.
Os principais elementos estruturais utilizados pelo compositor podem ser classificados: ostinato rítmico-harmônico, materiais melódicos com valor temático, materiais melódicos com valor motívico e elementos de pontuação.
A estruturação desses elementos se dá a partir de uma matriz M, constituída pelas seguintes relações:
I - constituição de uma célula geradora c, formada por a e b
II - a se situa em registro inferior, em relação a b e o antecede
III - c tem fundo métrico de 2 unidades
IV - M é formada pela repetição da célula c ou de seu retrógrado c'
A matriz M pode ser representada conforme o exemplo abaixo, tomando-se por base suas primeiras enunciações:

Ex. I - Matriz M.
O sistema de relações que constitui a matriz M, se deriva da estrutura rítmico-melódica do tema, como podemos observar a partir dos exemplos que se seguem:

Ex. II - Redução rítmica do tema (apenas notas atacadas).
Relações de simetria (rítmico-temporais)
Célula rítmica c, com fundo métrico de 2 unidades:
a) Idéia da justa posição do retrógrado: c + c'

b) Idéia da repetição idêntica: c + c



Ex. III - Redução do perfil melódico (pontos culminantes e notas de repouso).
Idéia da justaposição com o retrógrado: c + c' (comps. 1, 2 + 3, 4)
Idéia da repetição idêntica: c + c (comps. 5, 6 + 7, 8)

= ostinato tipo 1, que será apresentado a seguir

Ex. IV - Fusão das relações de simetria (rítmico-temporais e espaciais).
Caracterização dos elementos
A) Ostinato rítmico-harmônico
O ostinato rítmico-harmônico (O) se constitui no principal elemento de sustentação e ordenamento da peça. Confere unidade a um discurso que se utiliza de materiais melódicos de sistemas diversos (modal, tonal). Sofre transformações constantes, de acordo com os materiais melódicos apresentados, produzidas por alterações das formações harmônicas, mudança de fundo métrico, alterações da acentuação, das durações, etc.
À partir da matriz M, pode ser caracterizado em 4 tipos principais, de acordo com as relações existentes entre c e c'.
. Tipo 1 (O = c + c')
Subtipo 1 - em c, a é diferente de b do ponto de vista das durações. Existe maior diferença de registro entre a e b em relação aos subtipos 2 e 3 (Introdução).
Ex. V - Compasso 1.
Subtipo 2 - em c e c', a e b são idênticos do ponto de vista das durações. Existe menor diferença de registro entre a e b em relação ao subtipo 1 (Exposição).

Ex. VI - Compasso 25.
Subtipo 3 - existe menor diferença de registro entre a e b, em relação aos subtipos 1 e 2 (Reexposição).
Ex. VII - Compasso 62.
Devemos observar que esta gradual diminuição das diferenças de registro, entre os subtipos 1, 2 e 3 está ligada ao processo de caracterização rítmica que ocorre na peça.
A maior diferença de registro entre a e b corresponde ao reforço da acentuação e à maior caracterização rítmica.
A menor diferença de registro entre a e b corresponde à ausência de acentuação e à menor caracterização rítmica.
Na exposição se dá uma situação intermediária. Ocorre a acentuação característica, porém com menor contribuição da diferença de registro existente entre a e b, correspondendo a uma caracterização rítmica intermediária.
. Tipo 2 (O = c' + c)
Em c', b' é diferente de a' do ponto de vista das durações.

Ex. VIII - Compasso 26.

. Tipo 3 (O = c + c)

Subtipo 1 - a e b são caracterizados por uma pequena diferença de registro (2ª M).

Ex. XI - Compasso 31.

Subtipo 2 - a e b' são constituídos por silêncio. É mantida a pequena diferença de registro entre b e a' (2ª M).

Ex. X - Compassos 89 e 90.
. Tipo 4 (O = c + c + c)
Com a redução das durações de a e b, O é formado pela tripla repetição de c.

Ex. XI - Compasso 50.
B) Materiais melódicos com valor temático
O tema da “Branquinha” se constitui de uma melodia derivada da canção folclórica brasileira Dorme neném, através do processo de variação [Ver: Exs. XII e XIII].

Ex. XII - Estrutura rítmica do Dorme neném.

Ex. XIII - Estrutura rítmica da “Branquinha”.
Comparando os dois exemplos mencionados, observa-se que nas duas primeiras semifrases não existe nenhuma diferença dos valores rítmico-temporais. Somente na segunda semifrase ocorre variação [Ver: Exs. XIV e XV].

Ex. XIV - Tema do Dorme Neném.

Ex. XV - Tema da “Branquinha” (comp. 16 a 24).
Melodicamente a primeira semifrase da “Branquinha” começa numa 3ª M acima da nota inicial do “Dorme neném”, mantendo as notas da tonalidade original (Sol M). Na segunda semifrase existe alteração do perfil melódico, inclusive com omissão da tônica e da sensível. Neste processo de variação, a linha melódica apenas sugere uma tonalidade (ou modalidade), mas não a explicita.
Na estruturação do tema é importante observar a reiteração dos intervalos de 2ª M e 3ª m, que serão utilizados em outros materiais melódicos de valor motívico.
b.1.) Apresentações temáticas

1 - Fragmento do tema:

Ex. XVI - Compassos 31-33.
2 - Tema variado por cromatismo e harmonizado através dos blocos B1 e B2.
Bloco B1 - caracterizado pela repetição obstinada de uma mesma formação harmônica (2ª M + 5ª J);
Bloco B2 - caracterizado pelo movimento das 5ªs paralelas e dos intervalos de 7ª m que formam com o tema [Ex. XVII].
Ex. XVII - Linha melódica - LM -, bloco 1 - B1 - e bloco 2 - B2 (cps. 39-42).
3 - Tema no registro agudo, variado através da duplicação das durações e da presença de apojaturas [Ex. XVIII].

Ex. XVIII - Compassos 60-63.

4 - Fragmento do tema, variado através da ocorrência de uma 3ª M (Fá#) [Ex. XIX].
Ex. XIX - Compassos 80-83.
Ex. XX - Compassos 84-88.

5 - Tema apresentado na escala de tons inteiros [Ex. XX].

C - Material melódico com valor motívico

c.1.) Motivo I (MI)

Na análise de sua estruturação, encontramos o mesmo sistema de relações que constitui a matriz M. Constitui-se da repetição de c e c', justapostos a um eixo e:

Ex. XXI - M = 2c + e + 2c' (comp. 3).

c.2.) Ponte Melódica 1 (PM1)

Constitui-se à partir do motivo MI, derivado do tema através de pequena variação rítmico-melódica:

Ex. XXII - Motivo 1 (comps. 26 e 27).

A estruturação de PM1 segue a mesma idéia de simetria da matriz:c + c'.

Ex. XXIII - PM 1 (compassos 26-30).

c.3.) Ponte Melódica 2 (PM2)

Estruturada a partir da idéia de justa posição idêntica 3c' = 3c'. Existe pequena diferença entre A e A' pela presença da pausa no primeiro tempo de A.

Ex. XXIV - Compassos 44 e 45.

c.4.) Ponte Melódica 3 (PM3)
A sua leitura, à partir da matriz M, indica uma certa assimetria em relação ao ordenamento e ao número de recorrências de c.
1ª semifrase = 2c + c' (quebra da possível simetria 2c + 2c', pelo número de recorrências de c').
2a semifrase = 3c + 3c (quebrada simetria entre os dois termos, pela diferença de sua subdivisão métrica interna 2/3).
Melodicamente se estrutura por uma série de 4 notas, relacionadas entre si, por intervalos de 2a M e 3a m, provavelmente derivados do tema. O seu papel melódico segue uma mobilidade semelhante ao das melodias pentatônicas [Ver: Ex. XXV].

Ex. XXV - PM3 (compassos 46-49).
c.5.) Ponte Melódica 4 (PM4)
Sua estrutura se dá a partir da seguinte relação: PM4 = 2c + 4c'.
Parte da idéia da justaposição do retrógrado, com 4c' representando uma ampliação do perfil descendente.
Da mesma forma que PM2, melodicamente se constitui por uma série, que guarda relações intervalares, predominantes de 3a m e 2a M (ocorre apenas uma 2a m, no trecho da ampliação):

Ex. XXVI - Compassos 50-52.

c.6.) Ponte Melódica 5 (PM5)

Construída por um motivo que ritmicamente faz alusão ao tema, utilizando-se melodicamente de cromatismo:

Ex. XXVII - Compassos 78-81.

Ex. XXVIII - Cabeça do tema (comp. 28).

c.7.) Motivo I' (MI')

Constitui-se de uma variação de MI. Pode ser considerado mais simétrico que MI, do ponto de vista das durações (o fundo métrico não se altera como em MI). Do ponto de vista espacial, existe uma quebra de simetria, através do ordenamento de c e c':
Ex. XXIX - Compasso 53.

O prolongamento de MI' mantém relações de simetria na ordenação de c, explorando as idéias da justaposição do retrógrado e da repetição idêntica de c.
Ex. XXX - Compasso 55.
D - Elementos de Pontuação
São elementos que se inserem no discurso musical direcionando-o e interrompendo-o repetidamente. Constituem-se de estruturas melódico-rítmicas, que proporcionam significativas diferenças de registro e quebra do padrão métrico regular.
A partir dessas estruturas são construídas simetrias com alternância dos perfis ascendentes e descendentes.
d.1.) Elemento de pontuação 1 (EP1)
Estruturado a partir da justaposição de c e c'; espacialmente se constitui em cada tempo por uma série de 5 notas, que mantêm entre si intervalos de 2a M e 3a m predominantemente [Ver: Ex. XXXI].

Ex. XXXI - EP1 (compassos 11 e 12).
d.2.) Elemento de pontuação 2 (EP2)

Se constitui de um glissando realizado em dois planos com ataque defasado, a partir de notas diferentes.
Mantém relações de simetria com EP1, à partir da oposição dos perfis ascendente e descendente, conforme podemos observar no exemplo abaixo:

Ex. XXXII - EP2 (compasso 13).
d.3.) Elemento de pontuação 3 (EP3)
Melodicamente se estrutura a partir da repetição de um grupo de alturas, originário da escala de tons inteiros, associado a um cromatismo. Ritmicamente este grupo é realizado por alternância de fundo métrico 7/6 [Ver: Ex. XXXIII].

Ex. XXXIII - EP3 (compassos 34 e 35).

d.4.) Elemento de pontuação 4 (EP4)

Introduz a série que será utilizada nos compassos seguintes (comps. 46-47), com pequena alteração (Lá/Si) [Ver: Ex. XXXIV].

Ex. XXXIV - EP4 (compasso 44).

d.5.) Elemento de pontuação 5 (EP5)

Constituído por alturas originárias da escala de tons inteiros (sem apresentação da 5a) [Ver: Ex. XXXV].

Ex. XXXV - EP5 (compasso 57).

d.6.) Elemento de pontuação 6 (EP6)

Melodicamente se utiliza do seguinte grupo pentatônico, reorganizado por outras sucessões intervalares [Exs. XXXVI e XXXVII].
Ex .XXXVI - EP6 (compassos 94-98).
Ex. XXXVII - Grupo pentatônico.
ESQUEMA FORMAL
1a Seção (cps. 01-35)
[Exposição]

01- 13 [Introdução]
01-02: Exposição de Ostinato (Tipo 1 subtipo 1)
03-10: Ostinato (Tipo 1 subtipo 1) + motivo MI
11-13: Elementos de pontuação EP1 +EP2

14-35 [Apresentação]
14-15: Ostinato (Tipo 1 subtipo 2)
16-25: Exposição do tema com prolongamento + Ostinato (Tipo 1 subtipo 2)
26-30: Ponte melódica PM1 + Ostinato (Tipo 2)
31-33: Reexposição do tema fragmentado + Ostinato (Tipo 3 subtipo 1)
34-35: Elemento de pontuação EP3
2a Seção (cps. 36-52)
[Desenvolvimento]


36-37: Ostinato (Tipo 3 subtipo 2)
39-41: Reexposição do tema (variação por cromatismo e harmonização)
42-43: Prolongamento do tema + Ostinato (Tipo 4)
46-49: Ponte melódica PM3 + Ostinato (Tipo 4)
50-52: Ponte melódica PM4 + Ostinato (Tipo 4)
3a Seção (cps. 53-88)
[Reexposição]

53-56 [Introdução]
53-54: motivo MI' + Ostinato (Tipo 1 subtipo 1)
55-56: prolongamento de MI' + prolongamento Ostinato (Tipo 1 subtipo 1)
57: Elemento de pontuação EP5
58-59: Ostinato (Tipo 1 subtipo 2)
60-77: Reexposição do tema (duplicado e apojaturado) + Ostinato (Tipo 1 subtipo 2, cps. 60-61, e subtipo 3, cps. 62-77) + Pedal
78-79: Ponte melódica 5 + Ostinato (Tipo 1 subtipo 3) + Pedal
80-81: Fragmento do tema (variado pela 3a M) + Ostinato (tipo 1 subtipo 3) + Pedal
82-83: Ponte melódica 5 + Ostinato (Tipo 1 subtipo 3) + Pedal
84-88: Fragmento do tema na escala de tons inteiros + Ostinato (Tipo 1 subtipo 3, cps. 84-85, e tipo 3 subtipo 1, com ampliação rítmico-temporal, cps. 86-88)
Coda (cps. 89-98)

89-92: Ostinato (Tipo 3 subtipo 2) + Pedal
93: suspensão
94-98: Elemento de pontuação 6
Conclusão
A análise dessa peça nos convida a refletir sobre alguns pontos principais. O primeiro deles é relativo ao grau de coerência musical, que a obra adquire ao se constituir por elementos oriundos de um mesmo sistema de relações imanentes ao próprio tema escolhido (matriz M). Este nível de coerência se evidencia principalmente através do ostinato, base de sustentação da peça e onde a matriz transparece com maior clareza.
Outro ponto importante é relativo aos elementos e procedimentos musicais utilizados pelo compositor. Inicialmente verifica-se que existe uma utilização direta do material folclórico brasileiro, transfigurado por um jogo de procedimentos, que ao mesmo tempo nublam e atestam sua origem.
Neste processo a idéia de manter e valorizar principalmente as estruturas rítmicas originais nos parece ser um dado pertinente. Os exemplos XII e XIII da “Branquinha” nos mostram este procedimento, assim como os XXXVIII e XXXIX - relativos à 2a peça da coletânea -, estes de forma ainda mais contundente.
Ex. XXXVIIIa - Tema da “Moreninha” (cps. 3-6).
Ex. XXXVIIIb - Estrutura rítmica original (canção folclórica).
Ex. XXXIX - “Moreninha” (cps. 21-24).
Ex. XL - “Moreninha (cps. 39-42).
Apresentando o tema através de variações essencialmente melódicas, o que permanece e referencia a sua origem é a estrutura rítmica primordial.
Este tipo de escolha possibilitou ao compositor simultaneamente resguardar traços essenciais e característicos no “nacional” e se utilizar de um vocabulário melódico-harmônico contemporâneo. Encontramos nessas peças uma série de opções bem a gosto das vanguardas européias da época: utilização de escalas modais e de tons inteiros, seqüências melódicas breves de mobilidade pentatônica, harmonização por intervalos de 4as e 5as e ambigüidade entre as tonalidades maiores e menores.
Além dos procedimentos já citados ao longo da análise, diretamente envolvidos na estruturação formal, existem outros que merecem ser citados.
É bastante comum a utilização de um princípio de contraposição métrico-melódica onde a escrita repete um grupo de alturas, com alternância de fundo métrico, geralmente derivadas da justaposição binário-ternário (2+3, 4+3).
São forma das estruturas assimétricas, utilizadas principalmente nos trechos de desenvolvimento e pontuação, que se caracterizam auditivamente pelo deslocamento do acento métrico [Exs. XLI e XLII].
Ex. XLI - “Branquinha” (compasso 34).
Ex.XLII - “Moreninha” (compasso 9).

Outros procedimentos característicos são:
1. Simultaneidade de estruturas rítmicas contrapostas entre dois planos [Ex. XLIII]:
Ex. XLIII - “Moreninha” (compasso 29).

2. Utilização de notas pedais a partir de contratempos, sugerindo um terceiro plano perceptivo, defasado dos outros dois a nível temporal:
Ex. XLIV - “Branquinha” (cps. 74-75).

3. Ampliação e redução rítmico-temporal:
Ex. XLV - Ampliação do tema da “Moreninha” (cps. 12-15).
Ex. XLVI - Estrutura rítmica da “Branquinha” (1a linha) e da “Moreninha” (2a linha).
Como podemos observar neste último exemplo, o tema da “Moreninha, a boneca de massa” mantém parte da estrutura rítmica da “Branquinha”, sofrendo uma redução a nível do andamento.
O tema da “Branquinha” é duplicado na reexposição como forma de ampliação temporal [Ver: Ex. XVIII].
O tema da “Moreninha” é ampliado no processo de variação [Ver: Ex. XLV].
De imediato, observa-se a importância dessa coletânea no contexto cultural brasileiro da segunda década. Tomando por base o ano de 1918, verifica-se que essa obra se insere em um meio pré-modernista ainda impregnado pelo espírito da “Belle Époque” carioca, com seus rígidos padrões de gosto e beleza, que espelhavam o gosto da burguesia parisiense do início do século.
Nesse ambiente a convivência com elementos nacionais oriundos da cultura popular, era entendido com uma forma de transgressão às nomas do bom gosto.
É verdade que este quadro tende a ser alterado no final da década de 1910, quando as expressões da cultura popular começam a se impôr no cenário carioca.
A grande assimilação dessas manifestações populares, através de seu confronto com as rígidas fronteiras da cultura erudita, suscitou então uma série de escândalos públicos.
Em 1914, Nair Fonseca, esposa do presidente Hermes da Fonseca, causa indignação generalizada ao interpretar ao violão o “Corta Jaca” de Chiquinha Gonzaga(10). Oito anos mais tarde, uma ousadia semelhante chegou a criar extrema polêmica, quando Luciano Gallet tentou incluir em um programa, a ser executado na então Escola Nacional de Música, peças do compositor Ernesto Nazareth. Essa atitude provocou tamanha resistência nos presentes que houve intervenção policial(11).
Longe de fornecer um ambiente cultural homogêneo, a “Belle Époque” carioca, que teve seu apogeu na primeira década, se caracterizou essencialmente pela ambigüidade de seus valores. Se por um lado as elites se esforçaram para afrancesar o Rio de Janeiro, o outro lado da moeda consistiu na resistência que a cultura popular urbana ofereceu.
A trajetória de Villa-Lobos nessa época reflete o antagonismo cultural carioca, característico das duas primeiras décadas do século.
Oriundo de um meio onde imperavam as manifestações musicais eruditas, Villa-Lobos procurou desde cedo transpor suas fronteiras, vivenciando experiências musicais diversas junto aos “chorões” e demais músicos populares.
Se num primeiro momento o seu caminho como músico está ligado às orquestras de cinema, às rodas de choro, à composição de valsas, schottisches, polcas e dobrados, enfim de música popular sem maiores pretensões, logo se fazem presente as poderosas influências da música européia do final do século XIX, notadamente as de Wagner e Puccini inicialmente, e mais tarde as de Debussy(12).
O encontro consigo mesmo, de certa forma, coincide com os rumos tomados pela sociedade que o cerca, cuja transcendência está ligada à incorporação da totalidade de seus valores. Em busca de suas próprias raízes, o reencontro com o folclórico e o popular, mesmo que realizado de uma maneira bastante individual, pode ser entendido assim como parte de um movimento maior em termos sócio-culturais.
Antecedendo a Semana de 22, esta coletânea traz à tona uma das questões centrais do modernismo brasileiro, que foi a tentativa de assimilação da música folclórica à linguagem culta. A incorporação do nacional por Villa-Lobos aí se dá via uma postura de modernidade avessa aos padrões do academicismo vigente.
O depoimento de Rubinstein referindo-se ao concerto realizado no Rio de Janeiro onde foram executadas peças do cadernos no 1 da Prole do Bebê ilustra essa afirmativa de forma contundente: “mais tarde recebi cartas furiosas censurando-me por não ter tocado a boa música brasileira, aquelas coisas charmosas, saídas da pena dos professores do conservatório(13).
A compreensão dos caminhos percorridos pelo nacionalismo brasileiro, suas sincronias e defasagens com a modernidade, exigem de certo investigações em obras dessa natureza.

NOTAS

(1) NEVES, J.M. Música Contemporânea Brasileira, p. 27.
(2) KIEFER, B. Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira, p. 131.
(3) KATER, C. “Villa-Lobos de Rubinstein”, p. 250.
(4) Ver interessante discussão, em: WISNIK, J.M. O Côro dos Contrários, pp. 39-50.
(5) WISNIK, J.M. Op. cit., p. 41.
(6) Idem, p. 44.
(7) MILHAUD, Darius. “Brésil”, in: La Revue Musicale, no 1, Nov/1920, apud: WISNIK, J.M., op. cit., p. 45.
(8) Idem, p. 45.
(9) WISNIK, J.M. Op. cit., p. 51.
(10) VELLOSO, M.P. As tradições populares da “Belle époque” carioca, p. 25.
(11) KIEFER, B. História da Música Brasileira, p. 123.
(12) MARIZ, V. Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro, p. 39.
(13) Apud: KATER, C. Op. cit., p. 250.

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ORREGO-SALAS, Juan A. “Heitor Villa-Lobos. Figura, obra y estilo”, in: Revista Musical Chilena, ano XIX, Chile, Jul-Set/19
PAZ, Juan Carlos. Introdução à música de nosso tempo. SP: Duas Cidades, 1976.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão; tensões sociais e criação cultural na Primeira República. SP: Brasiliense, 1989.
VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na “Belle époque” carioca. RJ: FUNART/Instituto Nacional do Folclore, 1988.

Andréa Lage graduou-se em arquitetura (EAUFMG) e música (Escola de Música/UFMG). Pesquisadora da Fundação João Pinheiro, realizou, de 1985 a 90, estudos sobre a história musical de Belo Horizonte, sendo co-autora do álbum Memória Musical de Belo Horizonte (BH: Fund. João Pinheiro, 1988). Atualmente é aluna do Curso de Especialização em Musicologia Histórica Brasileira (EM/UFMG), onde vem realizando, sob a orientação do Prof. Carlos Kater, estudos sobre H.Villa-Lobos.

 

 

 

 

Forma-Sonata de Concerto


Robert Sterl: Concerto para Piano e Orquestra (Koussevitzky e Scriabin)
Robert Sterl: Concerto para Piano e Orquestra (Koussevitzky e Scriabin)
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Escrevi rapidamente sobre a forma do concerto barroco quando analisei o Concerto de Outono, das Quatro Estações do Vivaldi. Mas a partir do classicismo, o primeiro movimento de um concerto passou a ser escrito numa forma-sonata ligeiramente diferente da forma-sonata tradicional. Vou resumir aqui as diferenças básicas e depois comentar algumas das (muitas) exceções do repertório clássico-romântico.
(Em particular, espero poder ajudar o PQP Bach a achar um “momento bizarro” num dos concertos de Brahms, conforme comentamos no tópico das bizarrices beethovinianas).
Comparando as duas formas lado a lado, temos:
Forma SonataForma Sonata de Concerto
exposiçãofalsa exposição (orquestra)
[repetição opcional da exposição]verdadeira exposição
desenvolvimentodesenvolvimento
reexposiçãoreexposição
cadência (solista)
codacoda
Falsa Exposição
No modelo clássico, um concerto sempre começa com a orquestra (sem o solista) apresentando os dois temas principais da exposição, mas de uma maneira bem simplificada e sem muitos “comentários”. Por exemplo…


Rossini passado a limpo


Rossini
Rossini adorava ser fotografado, um novo luxo para poucos naquela época
Acho importante aproveitar este espaço para esclarecer questões que acabaram se tornando, inapropriadamente, discurso persistente de obsoletos (mas ainda presentes) formadores de opinião no meio musical. De certa forma isso já tem sido feito aqui – lembrando, por exemplo, o post recente dedicado ao resgate do trabalho e da importância histórica do injustiçado Georg Philipp Telemann (1681-1767).
Dessa vez, venho levantar a bandeira, sem intenção de esgotar o assunto, contra outra injustiça que ainda hoje é propagada desde conversas informais até publicações tradicionais: o desdém preconceituoso ao compositor italiano Gioacchino [ouGiovacchino, na grafia arcaica em sua certidão de batismo, ou, ainda, Gioachino, como era assinado] Antonio Rossini (1792-1868), gênio precoce que vem sendo reconhecido como o grande pai da ópera italiana do século XIX. Foi o modelo primordial de Gaetano Donizetti (1797-1848), Vincenzo Bellini (1801-1835) e Giuseppe Verdi (1813-1901), entre tantos outros, de forma direta e indireta, até os dias atuais – incluindo o nosso padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830).
Escola Rossini
Donizetti, Bellini e Verdi: os principais herdeiros musicais de Rossini
E qual a origem dessa atitude amarga? Tal discurso passou por graves equívocos históricos na abordagem feita à obra rossiniana. Particularmente me motivou nesse sentido o manifesto do crítico musical inglês Richard Osborne na obra Rossini: His Life and Works (2007, 2ª Ed.) – a mais rica biografia já escrita sobre o compositor. Permito-me aqui compartilhar, ratificar e, eventualmente, complementar as valiosas colocações de Osborne.
Wagner
Wagner, ativo defensor de Rossini
Inicialmente, é importante trazer o contexto histórico. A literatura registra que o declínio na popularidade das óperas de Rossini era percebido já na década de 1840, sendo acompanhado, após a morte do compositor, por um triste abalo na sua reputação, bem como perda de atenção e zelo dos músicos e críticos à sua obra.
Embora a fama de sua obra-prima por excelência, IlBarbiere di Siviglia, continuasse a crescer, muita música de qualidade foi abandonada e ficou desconhecida para o público em geral durante um bom tempo. Um dos primeiros a perceber essa inaceitável situação foi o compositor alemão Richard Wagner (1813-1883), cuja própria produção contribuiu para construir novos pilares da estética a partir de 1870.
Eine Erinnerung an Rossini, 1868
Eine Erinnerung an Rossini, escrito por Wagner em 1868
Tendo encontrado Rossini em Paris (1860) e mais cedo estudado sua música com profundo interesse, Wagner percebeu com propriedade o abismo existente entre o Rossini real e o Rossini desleixado, como foi divulgado pelo que Wagner chamou de “rebanho de parasitas e palhaços”, que cercava o mestre italiano nos seus últimos anos de vida. No seu belo tributo póstumo (Eine Erinnerung an Rossini, 1868), Wagner declarou que Rossini foi tão importante e essencial para sua época quanto os compositores Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), Johann Sebastian Bach (1685-1750) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) foram para a deles. Mesmo assim e com pesar, Wagner admitiu que a estrela de Rossini continuaria obscurecida até que as perspectivas históricas e musicais do início do século XIX fossem devidamente resgatadas.
A nossa época se vangloria do progresso nas artes, mas deixa de notar a ruína do antigo refinamento.
Richard Wagner (1813-1883) em Eine Erinnerung an Rossini, 1868.

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BARROCO E CLÁSSICO


DIFERENCIANDO O BARROCO DO CLÁSSICO NA PRÁTICA


Vivaldi x MozartEnquanto juntava material para o meu próximo post (ainda inédito), o blog recebeu uma mensagem de uma leitora em apuros com uma dúvida muito comum: quais as diferenças, na prática, entre o estilo Barroco e o estilo Clássico? Por que aPrimavera de Vivaldi é considerada barroca e a Sinfonia 25 de Mozart, clássica?  Foi aí que separei uns 40 minutos do meu tempo e montei rapidamente a resposta abaixo. Porém minha supresa depois foi grande, quando recebi vários elogios e agradecimentos não só da leitora mas também dos colegas de blog. Então, enquanto meu próximo post não fica pronto, resolvi compartilhar com vocês o texto tão elogiado.
Mas vou logo avisando: este post está dedicado aos ouvintes que TEM esta dúvida, e por isso ele está cheio de dicotomias e generalizações para que os ouvintes COMECEM a enxergar as diferenças. Tenho certeza que para cada exemplo que eu der, aparecerá alguém oferecendo um contraexemplo: mas a obra X é barroca e não tem essa característica. Sim, é claro, mas para justificar isso entraríamos em uma seara especializada que o ouvinte iniciante ainda não está preparado para enfrentar. Para estes ouvintes mais dedicados, peço um pouco mais de paciência pois ainda iremos dedicar posts e mais posts sobre o assunto. Aguardem!
As definições e teorias são fáceis de entender; quem quiser saber mais, leia aqui sobre o estilo barroco, e aqui sobre o neoclassicismo (que na música é chamado apenas de classicismo). Mas, e quando colocamos o CD para tocar, o que devemos observar para identificar os estilos?
O Barroco é detalhista…
Em resumo, o Barroco é aquela arte cheia de detalhes, cores fortes, uma enorme religiosidade e um grande contraste entre o sagrado e o profano. Então repare a quantidade de detalhes nessa estátua da Alemanha…

Markgrafenbrunnen Bayreuth~
… e depois ouça o início do Concerto de Brandeburgo n.2 em Fá Maior de Bach: